sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

O homem e a máquina

Luiz Barco
No começo do século (passado), o matemático alemão David Hilbert (1862-1943) propôs uma série de 23 problemas que, previa ele, marcariam os rumos da Matemática nos anos seguintes. Uma frase do texto com que apresentou esses problemas foi marcante: "Enquanto um ramo da ciência oferece uma abundância de problemas (a resolver), ele está vivo". Em 1931, um então ainda jovem matemático austríaco, Kurt Gôdel, apresentou um trabalho de algumas dezenas de páginas, cheias de símbolos, e nele deixou claro que Hilbert não estava inteiramente certo nas suas concepções.
Gõdel nasceu em 1906 na cidade de Brno, que na época estava no território austro-húngaro (atualmente pertence à Tchecoslováquia). Formou-se em Matemática e Física na Universidade de Viena e lá lecionou até 1938. Fugindo da guerra, viajou para os Estados Unidos, tornou-se cidadão americano e integrou-se ao famoso Instituto para Estudos Avançados da Universidade de Princeton. Morreu em 1978, aos 72 anos, e já então era tido como um revolucionário da ciência.
A Matemática é sempre considerada uma ciência sem contradições. Supõe-se que quando alguma coisa éprovada matematicamente, fica irrefutável. Essa crença gerou expressões populares do tipo "tão certo como dois e dois são quatro". Gôdel mostrou que mesmo dentro de um sistema rigidamente lógico, como o que foi desenvolvido para a Aritmética, podem ser formuladas proposições que são indecidíveis ou indemonstráveis, dentro dos axiomas desse sistema. Isto é, dentro do sistema existem enunciados precisos que não podem ser provados nem negados. Portanto, não se pode, usando os métodos comuns, provar que os axiomas da Aritmética não são autocontraditórios.
Essas idéias de Gõdellevaram a um novo ramo da lógica matemática, a teoria da indecidibilidade. Em suas implicações, a descoberta de proposições indec cidíveis foi tão perturbadora no século XX quanto deve ter sido para os pitagóricos, no século IV a.C., a revelação, por Hippasus, da existência de grandezas incomensuráveis. Mas uma conseqüência que ultrapassa os limites da Matemática é a que parece condenar um perseguido ideal da ciência: inventar uma coleção de axiomas dos quais todos os fenômenos do mundo natural possam ser deduzidos.
Gõdel, diga-se a bem da verdade, não tinha a aparencia e um revolucionário. Magro, modos gentis, falava pouco - e preferia a solidão.
Em Princeton, costumava abrigar-se na cantina para. Fugir aos visitantes sempre ansiosos por ver uma celebridade como ele. Mas suas proposições eram revolucionárias - tanto que provocaram longas e acirradas discussões, não apenas entre matemáticos, mas também entre os filósofos. A idéia de que é impossível provar por meios matemáticos que a Matemática não esteja em contradições mudou radicalmente muita coisa. E isso também em outros territórios, como os da Física e da Biologia.
Mas eis que uma outra luz se acende no infinito túnel do conhecimento. Recentemente, alguns teoremas tidos como indemonstráveis (pelo menos pelo saber aceito ortodoxamente) têm sido provados com a ajuda de calculadoras ou computadores. Por exemplo, o teorema das quatro cores. Bastam quatro cores para colorir um mapa (ou uma colcha de retalhos) de modo que nenhum país (ou retalho) seja vizinho de outro da mesma cor? Em 1976, os americanos W. Haken e K. Apple demonstraram que sim, trabalhando com um computador durante 1 200 horas.
Para muitos matemáticos, o uso de computadores em demonstrações desse tipo seria como usar um trator para escavar um sítio arqueológico. Acham que eles produzem uma cadeia finita de verificações, enquanto uma demonstração matemática deve ser breve, concisa e elegante. Para mim, isso é um exagero. Nós nos encontramos no limiar de novos tempos e por certo no século XXI teremos preocupações que talvez encontrem resposta na multidisciplinaridade. Mas é certo que jamais, como hoje, a intuição humana contrapôs-se à lógica mecânica. Quando Gõdel garantia que os formalismos são limitados, estava mostrando, em síntese, que o homem será sempre superior à máquina.

Fonte: Superinteressante setembro de 1988

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