terça-feira, 11 de outubro de 2011

O universo das probabilidades

Nos séculos XVIII e XIX, o universo das probabilidades era aceito provisoriamente; hoje a ciência e a lógica pregam a derrubada dos preconceitos contra a probabilidade, pois as incertezas são o traço característico do mundo moderno.

Luiz Barco
Um dia desses estávamos conversando fiado num dos corredores da Universidade, quando um aluno me perguntou, sem mais aquela: “É verdade que, segundo a Matemática, as religiões vão desaparecer?” Imagino que o jovem perguntador tivesse ouvido falar de alguma variação de um célebre problema sobre a gradual diminuição da probabilidade de um acontecimento passado, à medida que aumenta a duração da tradição pela qual foi estabelecido. Uma das mais conhecidas soluções foi apresentada em 1699 pelo matemático escocês John Craig, responsável pela introdução, na Inglaterra, do cálculo diferencial criado pelo filósofo e matemático alemão G.W. Leibniz (1946-1716) 
Em seu livro Thelogine Christianae Principia Mathematica, Craig estabeleceu que as desconfianças sobre qualquer história variam na razão dupla do tempo que passou desde o princípio. Por isso seu trabalho foi considerado uma paródia de Isaac Newton, que mostrara, na sua teoria da gravitação, que os corpos se atraem na razão direta de suas massas e na razão inversa no quadrado das distâncias que os separam.

Craig concluiu que a fé nos Evangelhos, se dependesse apenas da tradição oral, terminaria por volta do ano 880; mantida a dependência da tradição escrita, deverá terminar por volta de 3150. Notem que a conclusão embutida na pergunta do jovem estudante é muito mais forte do que a contida no trabalho do matemático. É preciso deixar claro, porém, que leis de grande importância em muitos ramos da pesquisa são derivadas da teoria da probabilidade. Por exemplo: a distribuição dos tiros disparados contra um alvo, a distribuição dos grupamentos de homens segundo sua altura ou seu peso, a distribuição da duração da vida nos indivíduos de algumas espécies, a distribuição na velocidade das moléculas de um gás etc., etc., etc.

Encontramos mais exemplos no livro de William Dampier, Uma historiada ciência e suas relações com a filosofia e a religião, de 1936. Mas vamos deixá-los de lado, para reforçar um alerta: desenvolvemos com os estudantes, no campo da Matemática, programas de estudo quase inteiramente de feições determinísticas, mas, uma vez formados, eles vão viver num mundo de feições estocásticas.

Essa palavra estocástico, hoje bastante comum em ciência, quer dizer incerto, fortuito. Assim, um mundo estocastizado é um mundo onde a sorte, a incerteza – mais especificamente, a probabilidade – são admitidas como um aspecto real. Ainda que ao risco de parecer enfadonho, lembraria mais um exemplo: um destacado especialista em teoria da probabilidade chefiou a comissão nomeada pelo missão nomeada pelo governo nos Estados Unidos para formular recomendações visando minimizar os efeitos do acidente na usina nuclear de Three Miles Island, em 1979.

Nem sempre foi assim, é claro. Mesmo depois de conhecida a teoria da probabilidade, seu uso nos primeiros tempos foi eventual. Os séculos XVIII e XIX foram permeados pela crença na regularidade dos fenômenos naturais, fosse o comportamento das galáxias ou das partículas de matéria, fosse o das pessoas ao levantar da cama pela manhã. Havia uma esperança de que a ciência seria capaz de explicar todos os milagres e todas as incertezas, desvendado leis simples e constantes que governariam todos os fenômenos naturais. O que se esperava da ciência esperava-se também no campo moral e político. O mundo seria deterministicamente explicável e o acaso resultaria apenas de nossa ignorância das leis ainda não reveladas.

O cálculo das probabilidades, nesse universo utópico, era apenas o provisório aceitável enquanto não se chegava à certeza de tudo. Não está muito distante o tempo em que a história das ciências nos encorajava a acreditar nisso. Hoje, ao contrário, a ciência e a lógica (lamentavelmente, não as escolas) pregam exatamente a derrubada dos preconceitos contra a probabilidade. Ela não é mais o provisório; as incertezas são o traço característico do mundo moderno e não apenas o retrato da ignorância dos homens que nele vivem.

Assim como o homem que constrói, o mundo não é uma obra rude e acabada, mas deliciosamente surpreendente. Suas leis, até há bem pouco tempo tidas como perfeitas e exatas, são hoje encaradas como regras flexíveis e variáveis, convenientes para nossos sentidos imperfeitos.
Fonte: revista Superinteressante, maio de 1989

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