É crença comum que o Universo natural é regido por leis matemáticas e, na esteira da aceitação dessa crença, dois professores de matemática, Philip J. Davis e James A. Anderson, apresentaram um artigo na SIAM Review, onde concluem que o universo e tudo o que ele contém estão matematizando permanentemente. O anjo ou demônio matemático residiria em tudo e, por extensão, nos seres humanos, os quais, mesmo sem esforço consciente, estão matematizando quando seus corpos reagem a condições transitórias e procura um equilíbrio regulador.
Uma semente, dizem os autores, está matemátizando quando produz pétalas com simetria sextúpla. Eles chamam essa matematização, que é inerente ao Universo, de inconsciente. Ela prossegue independentemente da nossa vontade, não pode ser evitada ou desligada. Não exige cérebro ou computador especial, força ou esforço intelectual. Em certo sentido, a flor ou o planeta são seus próprios computadores.
Do outro lado distingue-se a Matemática consciente e esta parece estar ligada aos humanos e, possivelmente, a alguns animais superiores. Essa é a que chamamos em geral matemática, e pode ser adquirida em grande parte por treinamento especial. Está ligada a uma manifestação do consciente e, não raramente, une-se a uma linguagem simbólica e abstrata. Porém parece muito difícil estabelecer uma linha divisória entre a matemátização inconsciente e a consciente, visto que esta última surge muitas vezes de uma privilegiada leitura que algumas pessoas fazem da natureza e das reações das outras pessoas.
Se é assim, a matemática aqui chamada consciente deveria ser fonte de prazer da descoberta associada à sensação esteticamente agradável de desenvolvimento. Então qual a razão da baixa eficiência dos programas de ensino-aprendizagem da matemática? Ou por que mesmo os usuários (engenheiros, físicos, economistas, geólogos...) mais treinados da matemática consciente parecem não tê-la incorporado, isto é, usam-na eficientemente, mas apenas no campo para o qual foram treinados?
Parece claro que a matemática evoluiu na direção dos problemas que assimilou e resolveu; assim, ela será útil ao homem comum quando resolver os problemas de seu quotidiano. Isso me faz lembrar minha primeira experiência como professor de matemática, um quarto do século atrás, em uma pequena cidade de São Paulo. Quis ser original, fazendo com que uma das classes cumprisse um longo programa de Geometria quase que inteiramente fora da sala de aula sem.
Sem o auxílio de teodolitos, ou qualquer outro aparelho sofisticado implantamos o projeto de uma praça que a Prefeitura havia solicitado ao departamento responsável do governo do Estado. Mas antes de entregarmos o trabalho, numa de nossas sessões de leitura e debate, descobrimos um curioso artigo relatando que os urbanistas holandeses, antes de projetar as obras que ocupariam os terrenos roubados ao mar, deixavam- nos abertos ao uso dos habitantes do lugar. Inconscientemente, eles marcavam no terreno o seus caminhos naturais, que os projetos acabavam respeitando.
Fomos ao prefeito, mostramos o trabalho pronto, mas dissemos que não acreditávamos em sua funcionalidade, pois o projeto fora concebido longe dali. O prefeito aderiu às nossas ponderações: o terreno da praça foi aberto ao público, e durante meses as pessoas marcaram, sobre ele, seus caminhos naturais. Então os belos canteiros concebidos pelo arquiteto puderam ser colocados na praça, mas numa disposição completamente diferente, pois os caminhos entre eles não haviam nascido numa prancheta, a centenas de quilômetros dali.
Essa operação criou, para aqueles estudantes, a necessidade de estudar problemas geométricos que transcendiam em muito os programas escolares - e eles o fizeram com gosto e eficiência. Creio mesmo que nunca uma classe daquele colégio havia estudado tanta geometria. E foi o desejo, um tanto atrevido, de substituir os programas clássicos pelo indisciplinado método de levantar e tentar resolver problemas de curiosidades matemáticas, o alicerce dessa experiência. Hoje, mais velho e experiente, mas ainda atrevido, não tenho nenhuma dúvida.
(fonte: superinteressante: novembro 1987)
Nenhum comentário:
Postar um comentário